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Precisamos falar de preconceitos internalizados

Fui provocado a falar sobre o episódio da YouTuber Karol Eller, amiga da família presidencial. Fiquei e ainda estou reticente. Num primeiro momento, não quis engrossar o coro daquel@s que foram imediatamente solidários com a dor dela frente à agressão.

Tudo que tinha lido sobre o assunto me dava a impressão de que alguma coisa estava fora do lugar ou no seu devido lugar. Entendi que eu deveria deixar o tempo agir e me mostrar mais informações. Vale dizer que nenhum gesto valida a violência, mesmo no caso de alguém que usa meios para defendê-la, ainda que seja negando que ela exista (no caso a homolesbotransfobia). Já passado alguns dias e com tantas reviravoltas, alguns símbolos me chamaram atenção.

Nas cenas divulgadas pelo Jornal Nacional no dia 19/12/19, pus-me a refletir. A moça (acho que posso chamá-la assim, já que ela se apresenta no feminino) se veste de uma maneira bem masculina, com cores fechadas e estereótipo típico de “mascu”, como bem grafou a escritora Lola[1]. Karol incorpora essa imagem seja na vestimenta ou nos gestos. É o típico macho que usa de substâncias encorajadouras para ganhar força, vigor. Ela usa uma arma para tentar intimidar e parte para cima do cara, que estava supostamente azarando sua mina, não importando qual o resultado e nem que o outro tinha supostamente uma compleição física maior que a dela.

A policial, companheira da YouTuber, era a autoridade ali. Com uma arma de fogo, ela era a profissional de Segurança Pública que deveria zelar pela segurança de todos e manter em local próprio e seguro sua arma, não permitindo que outra pessoa manuseasse. Nesse caso, considero a existência de outro símbolo próprio do machismo: muitos homens, que não aceitam e não convivem bem com a fluidez na relação de poder de suas companheiras e/ou companheiros, utilizam dessas outras ferramentas para se sentirem superiores. Nesse caso, a policial se rendeu a esse papel e, aparentemente, deixou que sua companheira agisse como um típico macho, tomando suas dores. Essa análise é feita a partir das imagens e matérias que foram noticiadas, que não permitem uma análise mais apurada.

Passado o ocorrido, a vítima (e também agressora) buscou apoio na Delegacia da Barra denunciando crime de homofobia. Vale lembrar que tanto a tipificação do crime quanto a existência da Delegacia só existem graças a inúmeras ações e lutas da comunidade LGBTQ+, que obrigou o Estado a criar mecanismos para garantia de vida a esse grupo historicamente agredido. Ela usou, sem nenhum pudor, o instrumento jurídico para se defender, mesmo tendo gritado aos quatro ventos que isso não existia. Estou certo de que os grupos de Direitos Humanos das pessoas LGBTQ+ não lutaram só para si ou só para aqueles que seguem marchando contra a violência. O entendimento é de que políticas públicas de segurança devem valer para todos que delas necessitarem, mesmo que não vejam e/ou entendam que é necessário esse tipo de ação.

Preconceitos Internalizados 

O preconceito internalizado no próprio indivíduo se traduz, muitas vezes, em adoecimento. E o que se faz é justamente desconstruir a ideia de normalidade e ajudar a lidar com todas as consequências trazidas pelo contato desse indivíduo com o mundo externo e com seus próprios modelos. Qualquer que seja nossa orientação e desejo afetivo sexual, todos nós, de um modo ou de outro, terminamos por internalizar padrões. Adoto o conceito trabalhado por GALIMBERT[2], que se refere à adoção por parte de um indivíduo de crenças, preconceitos, valores, atitudes, normas, leis, idéias, costumes, tradições, hábitos e modelos de comportamento em vigor em seu grupo social. Grande parte da socialização e educação visa justamente à internalização das normas sociais, tendo em vista a recompensa e a punição. Ou seja, é um processo por meio do qual uma pessoa incorpora a seu pensamento valores e crenças de outras pessoas ou grupos, deixando-se influenciar por eles.

Nesse sentido, todos nós acabamos por internalizar em algum nível o longo processo histórico de construção da homofobia e seus principais componentes (misoginia, patriarcado, machismo, homonegatividade, heterocentrismo, heteronormatividade, heterossexismo, heterossexualidade compulsória e as normas de gênero), que são formas totalitárias de sustentar, organizar as estruturas de poder e funcionamento da sociedade, compondo assim os elementos constituintes da homofobia.

Usando símbolos universais, fica claro que o pai da homofobia é o machismo e a mãe é a misoginia. É importante lembrar que tanto a misoginia como a homofobia também sofrem a ação de outros componentes presentes na sociedade, tais como idade, etnia/raça, classe social, escolaridade, sexo/gênero, profissão, modelos estéticos estabelecidos pelos mercados, local de residência e procedência de determinado grupo social.

Pensando nisso e seguindo na tentativa de entender o que se passou, ponho-me a pensar no drama que pessoas passam diariamente em suas vidas, sejam elas públicas ou não. Essas pessoas gritam, mas não são ouvidas, choram, mas não são acolhidas, amam e não se amam.

É muito não ser. É muito não viver. É muito sofrer. Essa confusão de NÃO em suas vidas acaba por projetar em seus gestos todo o sofrimento de existência por serem o que são e como gostariam ser. Não tenho dúvidas de que, embora não digam, essas pessoas se associam a outras para tentarem negar o quanto sofrem (por isso negam a existência da homofobia), exteriorizam, por exemplo, uma imagem do masculino ou do feminino estereotipada e violentada.

Me pego pensando na origem do mundo (branco) a partir da mitologia grega. Para a mitologia grega, no início era o Caos absoluto, desordem e confusão. É exatamente desse caos que surge Gaia, deusa imponente e graciosa. Gaia é a terra firme que Caos precisava. É a origem da vida, das plantas, dos animais e dos deuses que em breve habitariam o Olimpo. Juntos, portanto, não anulam suas diferenças. Eles são contraditórios, mas extremamente necessários um ao outro, no entanto, necessitam de algo para uni-los e oferecer uma certa harmonia. Desse encntro nascem os filhos Titãs e Titânidas.

É nessa magnífica mistura entre caos e desordem que faz nascer a vida mais ou menos como temos hoje em dia. Nada justifica pensarmos em harmonia simples, haja vista que nosso fim é, de fato, tentarmos ser melhores em cada tempo, acolher os diferentes e buscarmos medidas para que possamos viver sem destruir, aceitar sem suprimir e curar aquilo que nos faz mal, que nos tira a humanidade e que nos tira a felicidade. Mas, precisamos sim entender que felicidade não é ausência de sofrimento, de choro, de angustia. É o despertar para a ação que compreenda os distintos períodos e sofrimentos como fim de uma trajetória de busca, por um certo equilíbrio que irá de um lugar ao outro, de uma busca a outra, uma continuidade para haja o entendimento e que não precisemos mais buscar e que nos coloquemos em paz com nós mesmos.

A feitura de paz interior depende de como nós nos acomodamos com nossas cores, com nossas dores, com nossos amores. É aceitar que nascemos para sermos felizes e amarmos, ainda que a dor e o ódio existam dentro de nós. A Psicanalista Maria Rita Kehl[3] nos lembra que: “não vamos nos iludir: o pleno gozo é tão impossível de se realizar quanto a renúncia absoluta a qualquer forma de gozo”. Que não nos iludamos, mas que acolhamos as dores de cada um e de cada uma. Que consigamos ter empatia pelo transtorno ainda vivido por cenas como as que envolvem a personagem inicial desse texto e que saibamos que a herança de caos em nossa vida persiste e nos faz acreditar em muitas coisas que não são verdadeiras a priori, mas que tem um certo Q de verdade para aquele ou aquela que vive.

A YouTuber só está trazendo do submundo de seu viver as sombras da compreensão de si mesma. Ela agride a si própria, imaginando que assim amenizará a dor que sente em ser o que é versus aquilo que ensinaram que ela não poderia ser.

O que mais me preocupa é o uso desses seres por parte de outros. Estamos vivendo um período muito estranho e pessoas de pouco caráter, com projetos totalitários de desamor, utilizam os menos fortes para disseminarem sua lógica de poder e de destruição. Precisamos integrar a sombra e trazer o Caos para nosso lado.

Precisamos tomar cuidado para não nos confundirmos e nem deixarmos ser confundidos por esse tipo de narrativa. Com isso, não assumiremos aquilo que não é nosso e/ou não estamos de acordo. Precisamos desvendar os símbolos traiçoeiros que são utilizados para tentarem nos diminuir e nos colocarem em oposição a nós mesmos. Precisamos nos aquilombar para conversar, para discutir, para aparar nossas arestas e percebermos que somos mais do que nossas diferenças e que uma suposta harmonia pode nos ajudar e construir mais afeto, mais amor.

Texto: Mutá Sanchez (psicanalista) com a colaboração de  Dany Simoes

[1] Lola Aronovich. Professora da UFC, doutora em Literatura em Língua Inglesa pela UFSC. http://escrevalolaescreva.blogspot.com/

[2] GALIMBERTI, U. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Loyola, 2010.

[3] Maria Rita Kehl (Ética e Psicanálise, Cia das Letras, 2002)

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