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A unilateralidade da razão e o domínio do racionalismo neurotizante

O modelo de gestão organizacional, seja ele observado como campo teórico multidisciplinar ou conjunto de ferramentas práticas, no campo público ou privado, historicamente foi dominado pelo paradigma racionalista e cientificista. Esse paradigma, inspirado na tradição da ciência ocidental, em especial, aquela de inspiração iluminista e renascentista, em particular nas ciências ditas hardcore (ciências exatas), determinou uma influência avassaladora sobre a ampla maioria das teorias de planejamento institucional ou organizacional.

Os conceitos basilares dessa tradição se orientam pelos princípios da (1) previsibilidade do comportamento individual e coletivo; da (2) causalidade,  pela auto evidência das relações de causa e efeito entre fenômenos, processos, mecanismos e sistemas que operam nas organizações, sejam públicas ou privadas e da (3) normatividade,   pela ideia-chave de que o sucesso de uma organização depende basicamente da correta aplicação de protocolos, modelos, normas ou algoritmos previamente definidos e testados em condições de controle por gestores ou consultores organizacionais.  .

As premissas conceituais e filosóficas do racionalismo-cientificista desses paradigmas parecem não conseguir mais potência analítica (explicar a realidade), capacidade normativa (apontar quais as prováveis soluções), muito menos, capacidade preditiva, isto é, servirem como artefatos que geram modelos para o futuro, cenários, previsões que permitiram aos gestores se antecipar a problemas e assim otimizar seus resultados.

Abordagens vindas das ciências sociais também identificaram a falência de uma certa “racionalidade produtivista”. Castoriadis (1990, 1996), por exemplo, já alertava para a crise de identidade individual. A primazia do economicismo racionalista havia transformado a vida social num cassino, o indivíduo num autômato e a sociedade num festival de lobbies e grupos de pressão. O conceito marxista de alienação ganha novas interpretações, valores sociais e tradicionais (mérito, honra, trabalho, integridade, cuidado) são nivelados na medida do dinheiro, o homem vale o que ganha (ou é capaz de produzir). A financeirização da vida corre em paralelo à desumanização dos vínculos. O humano é instrumentalizado, coisificado, descartável, banalizado e reduzido à condição precária de um quase dejeto, subproduto do processo produtivo, fabril. O homo economicus, uma criação do utilitarismo econômico do século XIX, penetrou e contaminou todas as dimensões da vida organizacional.[1]

A psicologia analítica de Carl Gustav Jung oferece possibilidades – cognitivas, conceituais e metodológicas –para a ressignificação e recontextualização da crise desses paradigmas racionalistas.  A compreensão da dinâmica do inconsciente coletivo e as formações arquetípicas e sua relação com a dinâmica de poder nas organizações, em especial a capacidade explicativa das imagens da mitologia sinalizam uma outra compreensão das eventuais disfunções e “irracionalidades”.   

Jung sempre alerta para o potencial “irracional” do inconsciente coletivo e suas imagens arquetípicas:

 

[...]o inconsciente coletivo é um fator muito irracional e nossa consciência racional não lhe pode dizer que aparência deverá tomar [...] o inconsciente coletivo é uma função dinâmica e o homem deve sempre manter-se em contato com ele. Sua saúde espiritual e psíquica depende da cooperação das imagens impessoais [...] os arquétipos são a grande força decisiva e produzem os fatos e não os nossos raciocínios pessoais e a nossa inteligência prática. (JUNG, 2018, p. 180 e 181)

 

O mito de Cronos e Kairós tem especial relevância nesse contexto, pois evidenciam a relatividade do tempo e dos acontecimentos não controláveis pelos atores, indivíduos e instituições. Isto é, sua narrativa introduz elementos novos para leitura de eventos e fenômenos tidos até então, como simples “desvios” ou “erros de implementação” de “boas metodologias”. A própria noção de erro como algo que seria um desvio em relação ao considerado “normal” é relativizada por Jung: “nossos pecados, erros e enganos nos são necessários, caso contrário estaríamos privados dos incentivos mais preciosos ao desenvolvimento” (JUNG, 2018, p. 149).

As organizações que estruturam a ação coletiva da sociedade (instituições) de um modo geral vivem um momento de profunda crise. No setor privado a revolução tecnológica, o quadro de incerteza multidimensional e o esgotamento dos modelos de gestão e planejamento tem “se dissolvido no ar”, para usar a conhecida expressão de Marx, a solidez aparente das grandes corporações. No setor público brasileiro o modelo organizacional dominante é informado pela aplicação incompleta e tortuosa do paradigma weberiano, mesclado com a sobrevivência perversa de toda sorte de práticas patrimonialistas, clientelistas e pouco republicanas.[2] A ciência política e as teorias administrativas têm falhado em proporcionar uma abordagem mais convincente para entender esse contexto.  A narrativa da psicologia analítica apresenta um potencial inovador e desafiador, não só como ferramenta analítica, mas sobretudo como uma poderosa visão cosmológica e humanizadora robusta o suficiente para desconstrução da visão positivista-racionalista-instrumental que informa esses modelos organizacionais.

Neste sentido cabe menção a crítica junguiana à unilateralidade da razão. Jung acreditava que o iluminismo e o racionalismo do século XIX tinham inspiração na reação ao domínio moralista e religioso da era vitoriana e dos resquícios do mundo feudal.

 

Da mesma forma como, no passado, era um pressuposto inquestionável que tudo o que existia devia a existência à vontade criadora de um Deus espiritual, assim também o século XIX descobriu a verdade, também inquestionável, de que tudo provém de causas materiais (JUNG, 1984a, p. 285).

 

O renascimento representa a um só tempo uma retomada dos ideais naturalistas da antiguidade numa perspectiva não religiosa e o deslocamento do mundo interior para o mundo exterior, para a exteriorização do homem. A revolução Copérnico-galileana, junto com a revolução da filosofia cartesiana, num mundo de rápidas transformações produtivas e políticas com a burguesia comercial e novas monarquias, acaba por superar as antigas ordens.  Jung (1984a) escreveu:

 

Quando a idade gótica, com seu impulso em direção às alturas, mas com uma base geográfica e uma concepção de mundo muito limitadas ruiu, aluída pela catástrofe espiritual que foi a Reforma, a linha horizontal em que se desenvolveu a consciência moderna interferiu na linha vertical do espírito europeu. A consciência deixou de se desenvolver para o alto, mas ampliou-se horizontalmente, tanto do ponto de vista geográfico, como do ponto de vista filosófico. Foi a época das grandes viagens de descobrimentos e da ampliação empírica de nossas concepções relativas ao mundo. A crença no substancial idade da alma foi substituída pouco a pouco pela convicção cada vez mais intransigente quanto à substancial idade do mundo material, até que, por fim, após quatro séculos, os expoentes da consciência europeia, os pensadores e pesquisadores, vissem o espírito em uma dependência total em relação à matéria e às causas materiais. (p.283)

 

Newton, Kepler, Bacon e Descartes consolidam o início do grande período cientificista-racionalista. O universo é regido por leis, os princípios da física mecânica explicam todos os movimentos. Os fenômenos humanos e naturais estão sujeitos a regras de causa e efeito e à lógica determinística. Mesmo do ponto de vista biológico e fisiológico, como argumentou Damásio não haveria comportamento racional assertivo, sem influência das emoções. O córtex cerebral e sistema límbico estão carregados de substratos neurais envolvidos na aprendizagem emocional (DAMÁSIO, 2012). Como Jung nos diz, a exacerbação do materialismo racionalista, como reação ao misticismo, levou a uma unilateralização da razão. O materialismo e o misticismo, como ele diz, nada mais são do que um par psicológico de contrários, o ateísmo e o teísmo. são irmãos inimigos, dois métodos diferentes de enfrentar de algum modo as influências poderosas do inconsciente: um negando-as e o outro reconhecendo-as. A racionalidade e o materialismo contaminaram todas as dimensões e áreas do saber. Isso não significou o fim do não-racional, mas sua repressão ao inconsciente e no lado sombrio dos indivíduos.

Para Jung, podemos interpretar a realidade através da causalidade, da finalidade e da sincronicidade. Os dois primeiros são importantes, se relacionam com o mundo material, mas não são suficientes para explicar integralmente o comportamento humano. Daí o conceito de sincronicidade como uma conexão não-causal entre dois ou mais eventos, com significados equivalentes ou integrados.  A sincronicidade emerge assim como:

 

O problema da sincronicidade me tem ocupado há muito tempo, sobretudo à partir de meados dos anos vinte, quando ao investigar os fenômenos do inconsciente coletivo, deparava-me constantemente com conexões que eu não podia simplesmente explicar como sendo grupos ou "séries" de acasos. Tratava-se antes, de "coincidências" de tal modo ligadas, significativamente entre si', que seu concomitante “causal" representa um grau de improbabilidade que seria preciso exprimir mediante um número astronômico. (JUNG, 1984b, p.16)

 

O contato de Jung com Niels Bohr, Wolfgang Pauli e Einstein, também alimentavam a ideia de que a causalidade, mesmo nas hard sciences, precisava ser relativizada. Tanto a física quântica, quanto a astrologia, a alquimia, a filosofia chinesa, a mística cristã e a filosofia hindu inspiram Jung a usar o princípio da causalidade de maneira relativa. A coincidência de estados psíquicos com eventos passados, futuros ou simultâneos relativiza a noção de tempo e de espaço. Para Jung as chamadas “coincidências significativas” baseiam-se na interseção de fundamentos arquetípicos, como veículos ou “vasos” do macrocosmo, dos valores universais, com a experiência singular-individual. A sincronicidade apareceria, assim, quando um arquétipo fosse ativado no inconsciente em situações com forte energia psíquica e emocional, conectando-se com um evento externo. O arquétipo funciona como um ordenador, um condutor do evento sincronístico e como um produtor de sentido, onde o macrocosmo e o microcosmo se encontram. Assim, a psicologia complexa introduz no conhecimento humano aquilo que não é redutível ao comportamento mecânico das leis conhecidas e previsíveis. O inconsciente, pessoal e coletivo, é o grande locus da inovação e da criatividade, daquilo que não é e não pode ser conhecido intelectualmente, racionalmente. A irracionalidade se irradia da própria psique:

 

(...) a psique como qualquer força natural é um dado irracional. A psique parece mesmo constituir um caso especial do fenômeno da vida. Com o corpo vivo partilha a psique a capacidade de produzir estruturas significativas e orientadas para uma finalidade por meio das quais consegue reproduzir-se e desenvolver-se. E assim como a vida enche por si mesma a terra com formas de animais e plantas, do mesmo modo cria a psique um mundo ainda maior, que é a consciência, ou melhor, o conhecimento do Universo. (JUNG, 1981, p. 95)

 

Essa posição não se confunde, evidentemente, com a negação da racionalidade científica ou do método científico. O que a psicologia analítica questiona é o monopólio da compreensão da natureza pela lógica instrumental, científica, materialista e cartesiana.

O mundo do trabalho em que vivemos é dominado pela algoritimização dos ritmos vitais. Todos estamos submetidos à controles, métricas, avaliações e exigências cada vez mais severas, velozes e burocráticas. Tudo isso nos desumaniza e nos torna mais neuróticos. A reflexão junguiana é uma potente fonte de ensinamentos para a clarividência destes processos, o entendimento de sua lógica e perversão, mas sobretudo, para cultivo dos mecanismos de resiliência e sobrevivência psíquica.

 

Referências:

 

CASTORIADIS, C.  La crise du processos identificatoire, Connexions, Tolouse, Eres n. 55, disponível em https://www.documentation-sociale.org/base-prisme/5937/ [acesso em 08/08/2020]

CASTORIADIS, C. La Montee de L’Insignificance. Paris, Seuil, 1996.

DAMASIO, A. O erro de Descartes, emoção, razão e cérebro humano. Editora Companhia de Letras, São Paulo, 2012.

JUNG, C.G. A Natureza da Psique, Petrópolis, Vozes. 1981

__________ O desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis, Vozes, 1984a.

__________ Sincronicidade. Petrópolis, Vozes, 1984b.

 

[1] Segundo Mill, os valores do Homo Economicus seriam: a motivação essencial a toda a atividade humana é o interesse pessoal; o homem não obedece senão à razão; o interesse pessoal e a racionalidade são válidos em todos os lugares e em todas as épocas; o homem está perfeitamente informado, tem conhecimento da totalidade das consequências de todas as possibilidades das alternativas disponíveis; o homem vive o presente num tempo linear, não se lembra nem tem a capacidade de prever e, não menos impactante: ele está só e portanto livre dos outros homens, ou seja, não existem determinismos que lhe sejam exteriores. (MILL, 1999).

 

[2] Max Weber, um clássico da teoria administrativa, formulou normativamente o modelo de estado e de administração funcional ao capitalismo moderno: uma burocracia profissional, disciplinada e hierárquica; o primado absoluto da lei; a eficiência gerencial como valor; a racionalidade de processos administrativos e a impessoalidade na relação entre funcionários e cidadãos.

 

Texto: Jackson De Toni - Especialista em Psicologia Junguiana

 

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